segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Eu sou um gato, Natsume Soseki

Título: Eu sou um gato
Autor: Natsume Soseki
Tradutor: Jefferson José Teixeira
Edição: São Paulo: Estação Liberdade, 2008.

            Eu sou um gato é a obra de estreia do modernista Natsume Soseki, professor de inglês por formação que, com o sucesso da publicação em folhetins no ano de 1905 e posteriormente revisada e publicada como livro, engata uma carreira literária prolífica. Escreveu também sobre teoria literária, além de ser um astuto observador da classe intelectual japonesa, alvo principal de sua narrativa de estreia.
            Não há nada de metáforico no título: o narrador da obra é, de fato, um gato sem nome que dá sua superioridade aos seres humanos como um fato óbvio e pouco preocupa-se com fornecer-nos explicações acerca de sua condição de gato escritor. Ao invés disso, durante os onze capítulos que compõe sua obra, delicia-se em descrever, com minúcias, a estupidez dos humanos que encontra – em especial, de seu amo, o preguiçoso Kushami.
            Kushami funciona como uma espécie de alter-ego de Soseki, que tempera sua obra com referências a autores da época com quem tinha amizade e com experiências suas que aparecem transfiguradas na vida do professor Kushami. As notas de rodapé incluídas na edição são essenciais para que a compreensão do jogo feito por Soseki e a edição da Estação Liberdade supre as necessidades do leitor ocidental pouco familiarizado com a Literatura japonesa.
            O livro não deve, no entanto, assustar o leitor por pertencer a uma tradição com que o público brasileiro tem pouca familiaridade. O compromisso com o modernismo garante terreno comum suficiente para que a obra seja desfrutada sem problemas e é fácil para o leitor admirar a prosa elegante e certeira de Soseki, que debocha do discurso intelectual ao colocá-lo como fruto do intelecto de um gato com tendências filosóficas cujo objeto de estudo são experiências prosaicas. A ironia também é recurso constante e bem empregado, uma vez que Kushami e seu círculo de amizades é retratado como patético constantemente pelo narrador felino.
            Kushami é professor de inglês em uma escola para meninos e, apesar de dedicar-se pouco ao seu cargo, ser visto com estranheza por seus colegas e ridicularizado por seus alunos, enxerga-se como um intelectual. Constantemente embarca em tentativas frustradas de produzir arte, seja escrita ou pintura, apenas para alcançar resultados medíocres. É casado, possui três filhas e vive de aluguel em uma casa mal-cuidada. Seu amigo mais próximo é o esteta Meitei. Enquanto Kushami leva a si mesmo a sério, Meitei é o oposto: bonachão e mentiroso, suas histórias são sempre absurdas e exageradas. Há, ainda, Kangetsu, jovem discipulo dos dois que ensaia seguir o mesmo caminho, porém ao invés de dedicar-se às artes, dedica-se ao estudo de questões inúteis da física – que, proclama, é o futuro da intelectualidade. Um dos acontecimentos que amarram a narrativa envolve seu potencial casamento com a filha do próspero comerciante Kaneda, cuja inescrupulosidade típica dos comerciantes irrita profundamente ao inerte professor.
            Outro fio que percorre toda a obra é a reflexão acerca da tensão entre o modo de vida ocidental e oriental, fruto da abertura do Japão durante a era Meiji e também sentida profundamente pelo autor em sua experiência estudando na Inglaterra. A valorização da individualidade como expressão máxima típica da cultura ocidental em muito difere da valorização da comunidade e na busca de um “eu” sem artíficios como refúgio do oriente: em certo ponto, Soseki ilustra a questão afirmando que, frente a uma situação desconfortável, a cultura ocidental manda que busquemos mudá-la, enquanto a oriental manda que mudemos a nós mesmos para que essa situação deixe de nos incomodar.
            Há, no entanto, qualquer ranço de resistência que é simples fruto da diferença geracional que o próprio autor parece ter consciência especialmente fácil de perceber no tratamento das personagens femininos. A elas fica delegado o mundo das decisões práticas – uma vez que, na cultura japonesa, a economia do lar é responsabilidade das mulheres – e se são vistas com certo desprezo, retornam o favor na mesma moeda. Enquanto os personagens insinuam uma culpa ocidental para as mudanças de temperamento e maior liberdade das mulheres, a total inoperância masculina exposta no romance sugere uma necessidade de ordem muito mais próxima, até porque os conhecimentos das mulheres acerca da cultura ocidental é limitado pela educação recebida nas escolas femininas.
            O ritmo da obra só é prejudicado por, em alguns momentos, estender-se demais em digressões do narradoe. Estas, no geral, funcionam melhor quando inseridas em um contexto de ação e observação direta. O trabalho de tradução, revisão e pesquisa feitos pela Estação Liberdade é louvável e garante que a leitura flua até mesmo para quem tem pouca familiaridade com a cultura japonesa. Eu sou um gato é um romance interessante, que experimenta, mas também que preocupa-se em manter uma prosa instigante em seu olhar curioso acerca das trivialidades que fazem a vida cotidiana, transformando-a numa expressão interessante do modernismo japonês.

Nota:  ❤❤❤❤

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Quarenta Dias, Maria Valéria Rezende

Título: Quarenta Dias
Autor: Maria Valéria Rezende
Edição: Editora Alfaguara, 2014.



            Maria Valéria Rezende é escritora paulista natural de Santos e também faz parte da Congregação de Nossa Senhora, Cônegas de Santo Agostinho. Apoiou a luta contra a ditadura militar e dedicou-se ativamente, durante muitos anos de viagem pelo país, à educação popular e, por fim, escolheu Pernambuco como lar. Escreve tanto para crianças quanto para o público adulto, e suas obras já foram premiadas pelo prêmio Jabuti nas duas categorias. Quarenta dias foi premiado na categoria romance e livro do ano em 2015.
            O romance, escrito na forma de diário, acompanha Alice. Professora de francês aposentada, Alice leva uma vida relativamente independente na cidade de João Pessoa, até que uma visita de sua filha muda tudo. Decidida a ter um filho, Norinha, que mora em Porto Alegre, organiza a mudança de sua mãe sem levar em conta sua rejeição à ideia, pois precisa de sua ajuda para manter sua carreira como professora universitária.
            As tentativas de resistência de Alice são fúteis e logo ela se encontra no moderno apartamento montado por sua filha, com uma organização que lhe é estranha e seus objetos pessoais fora de seu domínio. Em meio a nova rotina, uma conhecida pede informações sobre um jovem pernambucano que mudou-se para POA e não deu mais notícias. Alice decide partir em busca de informações na cidade que pouco conhece.
            Sua aventura começa despretensiosamente, mas logo percebemos que, mais do que procurar o jovem, a protagonista deseja fugir da situação em que está e poder ser livremente: entra em bairros pobres, em favelas cheias de nordestinos como ela, conta com a caridade dos outros, dorme na rua, conhece os meandros da vida dos sem lar e, durante quarenta dias, na companhia de edições baratas de clássicos e de um caderno com capa da Barbie, sua interlocutora, Alice tenta por meio de sua narrativa lidar com o estranhamento que sente em relação à própria filha usando o desespero de outra mãe como justificativa.
            Maria Valéria Rezende usa bem os recursos que escolhe, dosando quando usar a complicada “reprodução” de diálogo que por vezes destrói o efeito de narrativas em primeira pessoa do tipo e alcançando um resultado bastante convincente. A voz de Alice é clara e representa bem sua posição social de mulher estudada e o tom despretensioso da narradora vai aflorando para revelar seus conflitos internos. A intensa viagem de Alice aos confins de Porto Alegre a aproxima de suas origens e revelam com sensibilidade tocante a solidariedade entre aqueles cuja existência é uma constante batalha.

Nota:  ♥♥♥♥

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Anatomia do Paraíso, Beatriz Bracher

Anatomia do Paraíso, Beatriz Bracher
Título: Anatomia do Paraíso
Autor: Beatriz Bracher
Edição: São Paulo: Editora 34, 2015.

            Título mais recente da autora paulistana Beatriz Bracher, Anatomia do Paraíso recebeu recentemente o Prêmio Rio de Literatura. A carreira da autora é impressionante e versátil: além de romances e contos, assina também roteiros de filmes e é uma das fundadoras da Editora 34, responsável pela publicação de seus romances. Além de seu título mais recente, seu livro Antônio chamou atenção da crítica e foi premiado em terceiro lugar com um Jabuti.           
            Anatomia do Paraíso divide seu foco narrativo entre dois personagens centrais, cuja oposição em que se encontram é o alicerce do enredo e também o que permite o desenrolar da tensão que carrega o romance: Félix é sustentado pelo pai e está escrevendo sua tese sobre o Paraíso Perdido de Milton, obra com a qual é obcecado desde o colegial; Vanda, sua vizinha, trabalha no IML, é responsável pela irmã mais nova e está estudando para o vestibular de medicina. Os dois moram no Rio de Janeiro, em um conjunto de apartamentos pequenos, estilo kitnet, do qual podem observar a favela e sua infinidade de janelas.
            Félix conhece o poema de Milton profundamente e seus mistérios o atormentam – estuda extensivamente o original e a tradução, assim como também é intrigado com a cegueira de seu autor, que supostamente teria ditado a obra para sua filha. Sofre de epilepsia, mantém relacionamentos sexuais com várias mulheres e com seu “amigo” soldado, possui uma relação tortuosa com o pai e é perseguido por uma forte sensação de alienação. É um personagem que exorcisa uma figura que nossa sociedade tem confrontado constantemente sem saber solucionar: o intelectual abjeto, ao mesmo tempo inteligente e capaz de insights, mas a quem falta humanidade, decência e limites – o mesmo objeto de estudo de obras como Lolita ou da especulação midíatica que cerca pessoas como Woody Allen e Roman Polanski. É próximo de Vanda, mas ao mesmo tempo sente-se afastado de sua energia prática, tão oposta ao seu temperamento difícil.
            Vanda vem de uma família simples, valoriza os estudos – maneira pela qual conseguiu sua atual posição – mas também é uma pessoa ligada ao corpo em um sentido bem físico: além de seu emprego preparando cadáveres após a autopsia, trabalha em uma academia como professora e há diversas cenas em que a vemos estudando os aspectos biológicos e anatômicos do corpo humano. Ela é uma mulher prática, ética e que se esforça para cuidar de sua meia-irmã mais nova, Maria Joana, uma pré-adolescente que não recebeu muitos cuidados ou amor antes de mudar-se com Vanda.
            A figura de Félix permite-nos diversas reflexões ao longo do livro: desde sua obsessão pelas traduções do Paraíso Perdido que, ironicamente, tornam Anatomia do Paraíso praticamente impossível de traduzir – talvez seja possível para outras línguas latinas, mas para as germânicas e em especial o inglês, não – até sua queda moral, charfundando no que há de mais abjeto do ser humano em paralelo ao trajeto da queda de Satã e da perversão do paraíso original. Félix é uma figura que afasta o leitor e causa-lhe repulsa extrema em alguns momentos. Já a figura de Vanda permite-nos a conciliação com a obra ao norteá-la positivamente com sua capacidade de enxergar e respeitar o outro. No entanto, resumi-los à bons ou maus personagens é um empobrecimento que Anatomia do Paraíso não permite: ambos são complexos e ambíguos, desconcertantemente consciêntes de suas próprias falhas.
            A violência sexual é um tema tão presente na obra quanto a reflexão metalinguística e, de certa forma, aproximados na medida em que ambos são trabalhados como um problema enraizado na comunicação. É muito comum que autores esquivem-se de realmente trabalhar essa questão além de cenas construídas para chocar de forma barata o leitor ou como uma justificativa clichê para explicar os desvios da norma dos personagens. O confronto entre Félix e Vanda, no entanto, explora satisfatoriamente o tema em toda sua profundidade. Ao mesmo tempo, seu desfecho não é um desfecho solucionador e a autora acerta a mão ao assim fazê-lo, fugindo de sentimentalismos pouco convincentes.
            Satisfatório – em seu sentido pleno e não como sinônimo de mediano - é um termo adequado para um romance que trabalha brilhantemente as tensões que constrói internamente sem esquivar-se delas no final. Como um poema, como o Paraíso Perdido, a autora dirige magistralmente a intensidade do romance, reconhecendo o momento certo de deixar as forças criadas correrem livres para depois serem novamene domadas. Satisfaz-nos mesmo com seu final que, com dois nascimentos marcantes para seus personagens, fica longe de sugerir uma redenção total.
            A prosa de Bracher tem um fluxo fluído e firme, e impressiona com uma estrutura eficiente que permite inclusive respiros de experimentação: o raro uso da segunda pessoa do singular (para o bom brasileiro, “você”), pequenos trechos de fluxo de consciência em momentos chave de tensão psicológica na narrativa e uma erudição impressionante que enriquece o texto ao estabelecer diálogo com outras obras (e que podem ser encontradas em um excelente índice remissivo que entrega a experiência de editora de sua autora). A palavra certa no lugar certo, obsessão de Félix, parece ser compartilhada por sua criadora.

            Anatomia do Paraíso é uma realização impressionante de uma autora madura e com uma visão clara a realizar e, talvez, uma das mais impressionantes da nossa literatura nos últimos anos.

Nota: ❤❤❤❤❤

terça-feira, 19 de julho de 2016

Poética, Ana Cristina Cesar

Título: Poética
Autor: Ana Cristina Cesar
 Edição: São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

            A companhia das letras lançou em 2013 Poética, volume único reunindo os escritos de Ana Cristina Cesar e com curadoria de seu amigo e também poeta Armando Freitas Filho. Aqui encontramos os livros publicados em vida pela autora: Cenas de abril, Correspondência completa, Luvas de pelica e A teus pés:prosa/poesia, além dos póstumos Inéditos e dispersos, Antigos e soltos e Visita à oficina. O livro conta ainda com apresentação, posfácio e apêndice escrito por nomes de peso como Viviana Bosi e Heloisa Buarque de Hollanda. É recomendado para o leitor que desconhece a obra da poeta um passeio pelos esclarecedores textos teóricos, que pintam uma viva imagem de sua autora e trazem oportunas reflexões sobre seu projeto poético, antes de mergulhar na leitura dos poemas.
            A obra de Ana C é marcada por dois aspectos aparentemente opostos, mas que aqui se complementam: um gosto pelo diálogo com o leitor e pelas marcas de uma linguagem atual, fresca, focada no plano semântico e uma profunda erudição em suas referências e procedimentos – ao mesmo tempo que nos sugere uma produção “in loco”, a leitura atenta nos faz perceber o artifício por trás desse efeito. No universo de Ana Cristina Cesar é clara a influência do método de T.S.Eliot em The Wasteland, com sua captura de vozes cotidianas intercortadas, há fortes ecos do projeto poético de Fernando Pessoa e da obra de poetas como Walt Whitman e Manuel Bandeira. Tudo isso é feito de forma relativamente explícita, assim como o jogo de interlocuções que constantemente convida o leitor para dentro da poesia para, logo em seguida, atordoá-lo com seus cortes bruscos e suas ironias.
             A predileção pelo tom confessional intenso e o flerte com a prosa que surge em seu trabalho com os gêneros textuais diário e carta sugerem uma relação fascinante com a expectativa que existe em torno da “escrita feminina”, sempre subvertida pela autora de forma irônica. Sua poesia trabalha os relacionamentos, o corpo, as questões existências, o movimento da viagem e o movimento do autor para o leitor sem ser indulgente ou pretensiosa.
            Seu enquadramento na geração marginal dos anos 70 deveu-se, em grande parte, a sua estréia na coletânea 26 poetas hoje organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, embora possa ser contestada na sua recusa à certos métodos da época como o uso do poema-minuto e sua vocação acadêmica; categorizações à parte, é indiscutível o impacto do legado de Ana Cristina Cesar na poesia brasileira – celebrado, esse ano, pela FLIP.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

A vegetariana, Han Kang

Título: A vegetariana
Autora: Han Kang
Tradução: Yun Jung Im
Edição: São Paulo: Devir, 2013.

            Han Kang é uma escritora sul-coreana bastante premiada em seu país natal e com uma considerável lista de obras publicados. A vegetariana, em seu formato romance-novelas, é o título responsável por, finalmente, chamar atenção do público ocidental, rendendo-lhe inclusive um Man Booker International Prize este ano. A autora representa uma geração de escritores coreanos menos preocupados com as chamadas “questões nacionais” fortemente presentes no país de independência consideravelmente recente, mas história antiga. No entanto, é ainda marcada pela inescapável reflexão que muito progresso em pouco tempo ocasiona, só que pelo viés do cotidiano e das pressões sociais, provavelmente o motivo pelo qual torna-se também mais acessível ao público estrangeiro.
            A vegetariana demonstra magistralmente em suas três novelas como pequenas rebeliões podem impulsionar a completa ostracização do indíviduo que perturba, ainda que minimamente, a ordem e leva o descompasso entre o indivíduo e a vida em grupo até as últimas consequências.
            O livro divide-se em três novelas que funcionam independentemente, mas também estão interligadas e estabelecem certa sequência de eventos – que é afrouxada pelas informações sobre o passado das personagens espalhadas ao longo das três de forma bastante inteligente. A personagem central aqui é Yeong-hye e seu núcleo familiar e cada novela possui um narrador diferente dentro desse círculo.
            A primeira novela leva o mesmo nome que o livro e é narrada pelo marido de Yeong-hye. Ele apresenta-nos sua esposa (a quem jamais refere-se pelo nome) como uma mulher comum, sem uma beleza ou inteligência excepcional e que jamais despertou-lhe emoções intensas. Pelo contrário, vê nessa banalidade do relacionamento dos dois sua maior qualidade: a mulher é alguém que limpa a casa, faz sua comida e com quem pode manter relações sexuais sem ter que pensar muito sobre essas coisas. A única reclamação que tem é o hábito da esposa de não usar sutiã.
            Um dia, sua esposa decide parar de comer carne após ter um sonho – e as descrições desse sonho são um dos únicos vislumbres que temos da sua interioridade – e parar de prepará-la também. Em um primeiro momento, ele acredita ser algo passageiro, mas conforme sua esposa mantém firme a resolução, o casamento dos dois começa a desmoronar. O conflito culmina em um almoço em família, em que os pais de Yeong-hye tentam intervir, mas acabam levando-a a uma tentativa de suicídio e subsequente internação.
            A segunda novela chama-se “A mancha mongólica” e é narrada pelo cunhado de Yeong-hye, um artista audiovisual que vive efetivamente sustentado pela esposa, com quem tem um filho pequeno.  Ele é quem leva a desacordada Yeong-hye ao hospital e começa a nutir uma obsessão por ela ao descobrir que, assim como seu filho, ela possui uma mancha mongólica esverdeada, mas na nádega. Essa mancha desencadeia uma visão artística cuja força o impele a arriscar seu casamento para vê-la concretizada em um controverso trabalho.
            Por fim, “Árvores-flamas” traz a visão da irmã mais velha de Yeong-hye, sua sensação de culpa por ter superado as dificuldades da infância e por ter falhado em proteger a irmã dos homens em sua vida – o pai, o marido de Yeong-hye e o seu próprio marido. A proximidade que o laço entre as duas cria faz com que ela seja a única a perceber a fragilidade da irmã e também com que, ao acompanhar sua loucura, sinta intensamente quão próxima está de perder-se - seu filho é a âncora que a prende ainda na realidade, um tipo de relação que Yeong-hye desconhece.
            Yeong-hye não torna-se simplesmente vegetariana como uma decisão política e consciente, mas sim cai irresistivelmente em um processo de lenta metamorfose kafkiana, deixando o mundo dos seres vivos para, dolorosamente, fazer parte do mundo vegetal. A prosa belíssima de Han Kang adapta-se aos seus narradores de maneira brilhante -  a aridez da primeira novela, contaminada pela total falta de sensibilidade e imaginação de seu narrador, a idealização exagerada da figura de Yeong-hye na segunda, dessa vez contamidade pelo excesso de sensiblidade e imaginação de quem narra e, por fim, o relato amoroso e sofrido da irmã e mulher na terceira juntam-se para humanizar a protagonista do romance e fazer-nos sentir a agonia da sua impossibilidade de comunicação – ela é uma figura que em mãos menos talentosas poderia ser caricata, mas que aqui é uma vítima dos papéis que lhe são impostos, cujo sofrimento pungente comove na sua recusa de exercer qualquer tipo de papel predatório. A tradução dá conta do recado, trazendo informações importantes sobre alguns pronomes de tratamento e até mesmo culinária da Coréia, porém a diagramação e tratamento do texto deixam a desejar. De qualquer forma, A vegetariana é uma obra marcante, belíssima e que merece o reconhecimeto que tem angariado recentemente.

Nota:  ❤❤❤❤❤

quinta-feira, 7 de julho de 2016

A amiga genial, Elena Ferrante

Título: A amiga genial
Autora: Elena Ferrante
Tradução: Maurício Santana Dias
Edição: São Paulo: Biblioteca azul, 2015.

            Primeiro livro de uma série de quatro romances, A Amiga Genial foi escrito pela italiana Elena Ferrante. Reclusa, Ferrante recusa-se a dar entrevistas que não sejam escritas e sua foto não consta na orelha do livro. Ela acredita que é benéfico um certo anonimato do autor para que a obra seja apreciada, embora essa escolha peculiar tenha, inadvertidamente ou não, chamado atenção do público.
            De qualquer forma, a escolha da autora faz sentido quando olhamos para o ponto de partida da narrativa: Lenu é informada do desaparecimento de sua amiga de infância, Lila. As circunstâncias são ainda mais curiosas: Lila deliberadamente apagou todos os traços de sua existência da casa que deixou para trás – roupas, fotos, bens em geral. Lenu intui que o objetivo da amiga é deixar essa existência para trás e por isso decide documentá-la com o máximo de detalhes possíveis por meio da escrita.
            Nossa narradora rememora a infância das duas meninas em um bairro suburbano da Napóles dos anos 50, um período marcado pelo pós-guerra. Ambas são de famílias de poucos recursos, embora a condição de Lenu seja um pouco melhor tanto financeiramente quanto à estrutura familiar – uma vantagem que não é tão nítida assim em um ambiente hostil, competitivo, marcado pelo domínio violento da mafia e por uma rígida estrutura patriarcal. As meninas crescem juntas, inseparáveis tanto nas brincadeiras quanto na escola. Lila começa a chamar atenção por sua inteligência, o que desperta o desejo de Lenu de também ser admirada, que é uma criança mais bonita e comportada do que a amiga.
            Assim, ambas começam uma silenciosa competição que compreende desde as notas escolares até ficar frente a frente com um homem temido pelas crianças do bairro. Lenu admira e inveja a espontaneidade de Lila, ao mesmo tempo que vê-se como seu oposto, sempre tendo que fazer um esforço para alcançá-la. As diferenças vão tornando-se ainda mais evidentes com a chegada da adolescência.
            Lila é impedida de seguir com os estudos e Lenu, com muito custo e graças à intervenção de sua professora, consegue seguir adiante para o ginasial.  A puberdade chega e com ela, Lenu vê sua aparência mudar rápida e intensamente – ganha peso, acne, passa a precisar de óculos. Enquanto isso, Lila deixa de ser a menina magrela e sua aura assustadora torna-se um ar misterioso, chamando atenção de todos os meninos do bairro. Lila tenta ainda acompanhar os estudos da amiga pela biblioteca, fato descoberto por Lenu acidentalmente, mas eventualmente desiste e entrega-se à sua realidade. Essa entrega tem, porém, um único objetivo: superá-la de qualquer forma.
            A narrativa é feita de capítulos curtos, movida pela ação constante e cheia de reviravoltas que só dão certo graças ao cenário intenso escolhido pela autora. Napóles e suas tensões constantemente nos lembra dos perigos que Lenu e Lila enfrentam simplesmente por serem meninas e jovens em um mundo extremamente violento e opressor. Se o mundo exterior é perigoso, o interior é um refúgio duvidoso: Lenu é aterrorizada pela própria insegurança, pelo medo de falhar em suas ambições acadêmicas, pela possibilidade de passar vergonha frente aos outros; enquanto isso, Lila tem que lidar com uma família sem perspectivas, um irmão e um pai explosivos e atenção indesejada de rapazes perigosos do bairro. Apesar de parecer forte, confessa passar por episódios do que chama de “desmarginação”. Durante esses momentos, ela passa por algo próximo de uma dissociação e a realidade parece-lhe distante e repulsiva.
            O relacionamento de Lila e Lenu é o coração de A amiga genial. Elas tem uma a outra como medida e alimentam por meio deste relacionamento o desejo de se desafiar e ascender. Mesmo nos momentos de crise ou de afastamento, o retorno parece inevitável. Não é uma amizade saudável, mas Lila e Lenu não têm modelos de relacionamentos saudáveis para seguir, então tentam forjar um meio de fazer com que suas vidas sigam paralelamente – é particularmente pungente a cena em que Lenu prepara Lila para sua noite de núpcias, triste de sabê-la prestes a ser “emporcalhada”. Há um desejo de união como a união da infância – pura, inocente – mas uma impossibilidade de trabalhá-la de outra forma ou comunicar por palavras. Resta para as meninas apenas o gesto e a obsessão de ecoar uma à outra, que conduzem a narrativa de Ferrante comoventemente, cativando o leitor.

Nota:❤❤❤❤
        

terça-feira, 26 de abril de 2016

Norte e Sul, Elizabeth Gaskell

Título: Norte e Sul
Autor: Elizabeth Gaskell
Tradução: Carlos Duarte e Anna Duarte
Edição: São Paulo: Martin Claret, 2015.

            Norte e Sul surgiu como um folhetim em 1845, na Household Words, revista cujo editor era Charles Dickens e, em 1855, foi revisto e publicado em sua forma final. Elizabeth Gaskell é um nome indiscutivelmente relevante da literatura da Era Vitoriana e em seu romance há uma clara preocupação com entender as relações sociais de forma a solucionar seus conflitos.
            Margaret Hale é uma jovem de família com certo status social e viveu boa parte de sua infância e adolescência em Londres, com uma tia rica. Apesar disso, sua família possui meios mais limitados uma vez que o casamento de sua mãe com um paróco foi financeiramente desvantajoso e motivado pela afeição genuína. Ao retornar para o interior, descobre que o ídilio bucólico com o qual fantasiava tanto, Helstone, logo será abandonado: a fé de seu pai oscila e ele decide abandonar seu cargo como pastor. A única alternativa para a família é mudar-se para o poluído e industrial Norte, mais especificamente a fícticia cidade de Milton.
            Lá, Margaret vê seus recursos financeiros escassos e seu círculo social extremamente limitado. Motivada por suas obrigações filiais, Margaret busca apaziguar o gênio difícil da sua mãe e ser compreensiva com seu pai, apesar de sentir dificuldades em aceitar seus questionamentos religiosos. Ele trabalha agora como professor e logo trava uma amizade com Mr. Thorton, industrial da área que deseja retomar os estudos dos clássicos abandonados devido às demandas do trabalho. Thorton é bem sucedido, obstinado e perspicaz e logo passa a frequentar a residência dos Hale.
            Apesar de perspicaz, Thorton não parece ser o suficiente para entender que suas constantes discussões com a filha de seu professor não são mero flerte e que o interesse de Margaret não é alimentado pelas visões de mundo contrastantes que os leva a discutir. A principal tese do romance, expressa pela sua personagem central, é a crença na conciliação entre a classe trabalhadora e os detentores dos meios de produção por meio da atitude cristã de olhar pelo outro e tratá-lo com dignidade, reconhecendo a situação de dependência em que ambos se encontram, enquanto Thorton considera absurdo prestar conta de seus planos e visões com qualquer pessoa.
            Enquanto uma greve dos trabalhadores ocorre em Milton, a doença de Mrs Hale aflige a família de Margaret. Tanto Thorton quanto Margaret acabam tornando-se um para o outro uma fonte de apoio quando menos esperam, embora um episódio em que o injustiçado irmão de Margaret visita escondido a família para despedir-se da mãe – certamente um lembrete de Gaskell de que as autoridades não são inquestionáveis – e a lembrança da primeira rejeição torturam os sentimentos de Thorton, mas também cimentam o relacionamento.
            Margaret é uma mocinha sofredora, como manda o figurino. É também de inteligência viva e princípios que despertam o respeito de todos à volta, o que impede que o romance caía no marasmo mesmo quando as reviravoltas são manipulativas, uma vez que o foco da narrativa em terceira pessoa está principalmente em seus pensamentos e sentimentos. A análise social proposta pelo romance é limitada, no entanto, pela insistência na solução religiosa – embora a figura de Mr. Hale e seus conflitos insinue uma redenção dessa falha, o destino para o qual ele encaminha sua família deixa clara a lição de moral planejada pela autora.

            Um típico romance social da Era Vitoriana, Norte e Sul garantiu, indiscutivelmente, o lugar de sua autora na História da Literatura britância e vale a leitura para quem busca conhecê-la.


Nota:  ❤❤❤

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Minha vida de menina, Helena Morley

Título: Minha Vida de Menina
Autor: Helena Morley
Edição: São Paulo, Companhia das Letras, 1998

            Minha vida de menina é o único livro de Helena Morley, pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant, o que só aumenta o fascínio em torno dele. Trata-se de uma coletânea de entradas do diário que a autora manteve, incentivada pelo pai, durante a sua meninice na Diamantina de 1893 até 1895 e que foram posteriormente organizadas para a publicação pela primeira vez em 1942. A obra é considerada uma pitoresca representação da vida do interior mineiro e sua prosa despojada parece adiantar a proposta modernista, o que fez com que alguns críticos considerarem uma revisão posterior por parte da autora. 
            Helena narra uma vida simples com seus pais, irmão e irmã em uma casa no campo, próxima também da propriedade de sua abastada avó que a tem como neta favorita. Apesar disso, as condições da família são bastante precárias, uma vez que seu pai trabalha com mineração e os rendimentos oscilam de acordo com sua sorte.
            Não há tanto espaço assim para sofrimentos na mente ativa de Helena e ela é uma figura carismática para o leitor tanto quanto para seus familiares – é inteligente e vivaz, afeita ao trabalho que a mantenha ocupada, em especial o físico e de uma sinceridade cômica e mal contida. Apesar das restrições da época, Helena é incentivada por sua família a seguir pensando independentemente e é admirada por todos por sua inteligência.
            As memórias aqui retratadas permitem uma visão interessante das relações sociais em um país em que o fim do regime escravocata era recente e em que a corrida do ouro perdia o gás. As relações de dependência entre as classes sociais, as superstições locais, as relações familiares ameaçadas pelos conflitos ocasionados pelo dinheiro e pela competitividade e o espírito não-conformista de Helena fazem com que as entradas tenham um tom de lição, encerradas sempre por meio de uma observação afiada, questionando a ordem das coisas. Ao longo do livro, acompanhamos a vida da protagonista e seu desenvolvimento,  o que o aproximando também de um romance de formação, apesar de ser um diário.
            Ainda sobre a obra, Roberto Schwarz escreveu o brilhante ensaio “Outra Capitu” em que analisa como o caráter progresssista das relações sociais descritas na obra – preconceitos, superstição e costumes são alvo da análise implacável de Helena – deve-se, principalmente, ao momento ecônomico do país que incentivou um afrouxamento na centralização do poder patriarcal, além da influência protestante exercida pelo lado inglês da família Morley. Schwarz aponta as semelhanças entre as origens de Helena e Capitu em um ensaio que vale a leitura para os interessados nas representações literárias deste período histórico do Brasil.
            A prosa episódica, objetiva e sem rodeios é cativante e consegue manter a atenção do leitor – o suficiente para, também, dispertar a interessante discussão sobre o quanto dela é produto da espontaniedade infantil e quanto é artifício. Ao mesmo tempo, é uma leitura que atinge um amplo público, com potencial para agradar aos mais novos também. A escrita de Helena Morley consegue retratar de maneira colorida um período intenso pelo qual as meninas passam, coincidindo aqui com um período intenso de nosso país. Com sua entrada na lista de livros obrigatórios da FUVEST, podemos contar com seu retorno às livrarias. 

Nota: ❤❤❤❤

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

O coração é um caçador solitário, Carson McCullers

Título original: The heart is a lonely hunter
Tradução: Sonia Moreira
Edição: Companhia das Letras, 2007.

            O coração é um caçador solitário é o romance de estreia da autora norte-americana Carson McCullers, publicado pela primeira vez em 1940. O livro foi sucesso de público, colocando sua autora na lista de mais vendidos.
            O cenário do romance é em uma cidade do sul dos Estados Unidos no final da década de 30. Os capítulos alternam o foco narrativo de um personagem para o outro, como inicial apresentando-nos à amizade entre os únicos mudos da cidade – o grego Antanapoulos e o judeu Singer. A rotina calma dos dois deixa de existir quando Antanapoulos começa a apresentar comportamento violento, desencadeando a decisão de sua família de interná-lo. Singer vai morar em um quarto de um pensionato e, aos poucos, novas figuras começam a surgir em sua vida.
            Biff Brannon é dono de um restaurante em que trabalha com sua mulher, Alice. Tem como hábito acompanhar avidamente as notícias e arquivar jornais. Mick é filha dos donos do pensionato e obcecada com música. Seu maior desejo é poder aprender a tocar um instrumento, mas as condições de sua família fazem desse um sonho impossível. Jake Blount, de passagem na cidade, é um trabalhador que sonha com uma revolução comunista. Benedict Copeland é o médico da cidade, que trabalha exaustivamente e vê em seus filhos o fracasso do sonho de superar pelo estudo o terrível fardo da escravidão que carregam os negros americanos. Singer é o ponto fixo em torno do qual esses personagens orbitam, ocasionalmente vislumbrando uns aos outros e, dois momentos pivotais do livro, encontrando-se todos.
            A amizade de Singer com essas pessoas é fudamentada, principalmente, no desejo delas por comunicação. Sua mudez o faz quase um ser místico para os personagens que enxergam no seu silêncio a compreensão de suas angústias mais internas, que hesitam em verbalizar com alguém que possa de fato respondê-los. Singer, no entanto, sente-se solitário sem Antanapoulos - seus sentimentos por ele são próximos aos de ordem romântica, mas em nenhum momento é explicitado se é essa a natureza do relacionamento dos dois – e enxerga nessas pessoas a representação da ausência da compreensão que acreditava encontrar em seu amigo mudo.
            A impossibilidade da comunicação real e suas consequências é o fio condutor da narrativa e também o guia os personagens aos seus desfechos: os planos arruinados de Mick, o fracasso do sonho de Dr. Copeland, a desistência e partida de Jake e a solidão cada vez mais intensa de Biff. A prosa de McCullers é fluída e objetiva, mudando levemente seu tom para dar conta melhor do personagem que recebe o foco narrativo em cada capítulo. São particularmente pungentes os capítulos dedicados ao Dr. Copeland e à Mick. Apesar da vida miserável e árida das suas personagens, a autora acerta ao conferir às vidas interiores deles – Mick, inclusive, explicita essa divisão ao referir-se à sua obsessão com música e com Singer como “o mundo de dentro” – é complexa e rica e a negociação entre a realidade e a interioridade surge como um processo dolorido reservado a todos os personagens.
            Publicado quando a autora tinha apenas 23 anos, O coração é um caçador solitário explora a miséria humana enquanto consciente das diferentes forças sociais que a causam, criando uma vívida imagem e personagens tocantes e complexas. 

Nota: