Autora: Gillian Flynn
Edição: Shaye Areheart Books, 2006.
[Aviso aos navegantes: tentei ser o mais vaga possível, mas essa resenha acaba entregando alguns pontos importantes do livro.]
Gillian Flynn é autora de
romances de suspense e crítica de televisão para a Entertainment Weekly, uma das principais publicações
norte-americanas da área. Sua primeira obra publicada foi Na própria carne (Sharp Objects), em 2007. O romance Garota Exemplar (Gone Girl, 2012)
catapultou a carreira da autora, que assinou também o roteiro da adaptação
cinematográfica dirigida por David Fincher de 2014 com Ben Affleck e Rosamund
Pike nos papéis principais.
Sharp Objects é narrado por Camille
Preaker, uma jornalista que recebe a missão de cobrir uma série de assassinatos
cujas vítimas são meninas em sua cidade natal. Após anos em Chicago, ela deve
retornar para Wind Gap, uma pequena cidade interiorana onde seu nome é sinônimo
de um pequeno império: sua mãe herdou uma lucrativa criação de porcos e uma
bela casa vitoriana.
Camille
vai aos poucos retomando contato com pessoas do seu passado – sua opressora
mãe, Adora, sua meia irmã Amma, e suas
amigas do colegial – além aproximar-se do policial responsável pelo caso,
Richard. Conforme Camille vai avançando em suas investigações e em seus
relacionamentos pessoais, a resposta para o mistério local vai se tornando cada
vez mais óbvia: o verdadeiro desafio para a protagonista é empoderar-se o
suficiente para encarar os fatos e fazer o que precisa ser feito. Os
sentimentos conflitantes causados pela morte de sua irmã mais nova voltam a
persegui-la, a rejeição de sua mãe e a sensação de estranhamento causada por
seu status de bastarda na família
(Camille é o resultado de um relacionamento de sua mãe durante a adolescência e
jamais conheceu seu pai) tornando-a cada vez mais instável.
É
acertada a escolha da autora em focar em sua protagonista e nas personagens que
povoam seu universo ao invés de tentar confundir o leitor o tempo todo – e é
justamente por isso que a guinada nos capítulos finais parece despropositada e
apressada, com a única finalidade de surpreender o leitor. Adora e sua cidade –
ou melhor, seu reino - são fruto metade
dos contos de fada, metade das narrativas góticas e um verdadeiro trunfo da
autora: há algo verdadeiramente perturbador na ideia da figura materna como
fonte de horror e é isso que faz com que, apesar de irregular, Sharp Objects seja um romance cativante.
Flynn
também procura aqui deixar clara sua proposta como autora. Seu interesse está
em explorar vilã, mulheres perturbadoras e mulheres perturbadas. Ao longo da
investigação é repetido constantemente que mulheres não comentem o tipo de
assassinato que estamos acompanhando. As relações entre as personagens
femininas são manipulativas e tóxicas. Amma e suas amigas, meninas que acabaram
de entrar na adolescência, são maliciosas. As mulheres não são apresentadas
como inocentes, acolhedoras ou covardes
– talvez esse papel caiba mais aos homens, como Richard, o editor do jornal
onde a protagonista trabalha e o padrasto de Camille. São mulheres que colocam
a narrativa em ação e mulheres que encontram as respostas, mas elas não são
boas mulheres.
Se
é fascinante ver uma autora ter coragem de usar todos esses esteréotipos
negativos da figura feminina que existem no inconsciente coletivo, é também
atividade exige um equilíbrio delicado que, às vezes, a autora perde. Na mídia,
as mulheres tem sua complexidade ignorada, sendo previsiveis e superficiais em
sua construção. As personagens femininas
de de Flynn usam essa aparente falta de complexidade como uma máscara para
manipular sua audiência e escapar de seus crimes.
A obra da autora consegue ser de fácil consumo
graças à uma prosa objetiva, mas cativante e obtém amplo alcance justamente por lidar
com essas questões de gênero raramente articuladas em nossa sociedade. Em certo
ponto do romance, Amma, a adolescente complicada, abandonada à própria sorte
entre homens que a objetificam apesar de seus treze anos e uma mãe que a
vitimiza – recusando-se, também, a enxergar sua humanidade, afirma em certo
ponto do romance: “Sometimes if you let people do things to
you, you're really doing it to them.”
Ela acaba, por fim, a ser vítima e algoz ao mesmo tempo, além de qualquer
salvação graças ao condicionamento que a torna incapaz de conexões reais. Está
aí o ponto de partida da obra de Gillian Flynn.
Nota: ♥♥♥